sexta-feira, 3 de junho de 2011

Artigo: Demóstenes no Blog do Noblat


O retrato de um sistema falido

Antonio Marcos Pimenta Neves matou a jornalista Sandra Gomide com dois tiros nas costas em 20 de agosto de 2000. Para se aproximar e namorá-la, usou do poder de chefe; para assassiná-la, abusou da confiança e da covardia.

Seis anos depois, pegou 19 de prisão. Quanto mais tempo durava a impunidade, menor ficava a pena, já insignificante diante da atrocidade: a Justiça a amputou para 18 anos e, em seguida, para 15.

A continuar nesse ritmo, o temor era que acabasse indenizado pelos poucos dias de hóspede no cárcere. Pois mesmo sendo réu confesso, prenhe de agravantes e vazio de atenuantes, só agora, mais de década depois, entrou de fato na cadeia. Para a sociedade, discutir os motivos desse absurdo é tão básico quanto cobrir de impropérios o gélido algoz.

A folga de Neves virou tema de conversas por se tratar de um criminoso notório, mas a verdade é que o Brasil está um imenso pimental.

Livrar-se solto após barbarizar pessoas tornou-se a regra, não importa a condição social delas nem do bandido – se este for rico, então, só conhece penitenciária por dentro em documentário.

Ninguém vai preso. Se for, não fica. Se ficar, sai logo. Se não sair, entra com recurso. Começa, então, a novela “Morde e assopra”, a lei abocanha a esperança da família da vítima e sussurra nos tímpanos do verdugo os códigos Penal e de Processo Penal e a Constituição, poemas de amor aos malfeitores.

Até aí viveu Neves no emaranhado de recursos, em seu duplo significado, o dinheiro jorrando para vida mansa longe das grades e os expedientes jurídicos da ignomínia institucionalizada.

Ele se confessava culpado, mas a Justiça o desmentia, presumindo-o inocente. E assim se passaram onze anos, tanto tempo que nesse ínterim se redigiram milhares de projetos, alguns deles redundaram em lei, mas nada que incomodasse a paz de cemitério gozada pelos tiranos.

Fez-se, entre outras, a nova versão do Código de Processo Penal. Redigido por uma comissão de notáveis, tendo à frente o mestre Hamilton Carvalhido, então ministro que tanto honrou o Superior Tribunal de Justiça, o anteprojeto foi feliz. Reconhecia:

“A disciplina legal dos recursos deve buscar a celeridade necessária à produção da resposta penal em tempo razoável e socialmente útil e à tutela dos direitos fundamentais dos indiciados ou imputados autores de infrações penais. Tal celeridade, resultado de múltiplas funções e variáveis, entre as quais uma eficiente administração da função jurisdicional, é uma das condições da efetividade da norma penal”.

E criticava “a interpretação ampla do cabimento do habeas corpus”.

A boa vontade da comissão foi insuficiente para tirar no novo CPP o oceano de filigranas e a elasticidade do hc, instrumento para coibir (inclusive a possibilidade de) prisão ilegal, hoje servindo até de cadeado de inquérito. É uma conquista da cidadania, um remédio constitucional cujas doses o transformaram em veneno. Os recursos, criados para evitar injustiças, viraram fermento delas.

As exceções foram se estabelecendo como regras, o que era mostra de evolução da espécie virou ameaça de extinção da própria e os Pimentas brotaram quais ervas daninhas na horta do Judiciário, prejudicado pela genuflexão do Legislativo diante de um Executivo que quer resolver superlotação de presídio soltando quem não merecia e deixando de prender quem precisava.

Assim caminhou a desumanidade para o interior das codificações. Tal é a frouxidão penal que as autoridades praticamente pedem desculpas aos réus antes de os denunciar, se persignam antes de os condenar e comemoram antes de os libertar.

A legislação processual se espreguiça pelo Congresso e não vai alcançar Neves, capaz de ele sair antes dela.

Assim como a Constituição tradicionalmente traz a Bandeira Nacional, os exemplares do próximo CPP talvez tenham na capa a foto de Pimenta Neves, o retrato acabado de um sistema falido.

Demóstenes Torres é procurador de Justiça e senador (DEM/GO)

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