domingo, 12 de junho de 2011

Artigo: Demóstenes no jornal Tribuna do Planalto


Sua cidadania por 30 centavos

Demóstenes Torres

A Constituição da República é apenas um tratado de intenções, na visão de quem lucra sob os panos com o fato de ela ser uma colcha de retalhos. Foi escrita na (e para a) transição, daí acolher as garantias de que o regime de exceção, recém-sepultado, não sairia da cova para assustar a democracia. Lá estão de trechos descartáveis a princípios realmente esperados em documentos similares. Piores que isso, mas culpa do fracionamento exótico, são as interpretações, como se a Carta Magna fosse uma carta de vinhos – retira-se o que quer, consome, joga fora o frasco. Os direitos sociais, por exemplo, foram atirados ao esquecimento sem os beneficiários sequer terem acesso à expectativa.

No capítulo, o artigo 7º é poesia pura em 34 estrofes, mas os favorecidos são enganados com um argumento irretocável, a falta de regulamentação. Veja-se o caso do salário mínimo, que deve ser "capaz de atender às suas (dos trabalhadores) necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social". A conta é simples, salário mínimo de 545 reais, quatro pessoas em média sustentadas pelo empregado, 136 para cada ou 4,53 por dia. Com uma nota de 5, descontadas as moedinhas, é possível cumprir o mandamento do inciso IV do artigo 7º?

O problema é pior para os mais de 16 milhões de brasileiros que vivem com a metade do mínimo ou o quarto do pânico. É a extrema pobreza, que a presidente Dilma Rousseff promete extirpar. Co¬me¬çou, como tudo do governo, com a ficção. Na Espanha de Cervantes, Dom Qui¬xote promovia embates épicos contra gigantes que na verdade eram moinhos de vento. No ímpeto de derrotar ilusões, acabou no chão, rendido diante da realidade. No Brasil, a máquina governamental tenta tornar a realidade um sonho publicitário, mas, a cada investida contra os fatos, invariavelmente, também acaba na lona.

Foi o que ocorreu no lançamento do plano Brasil sem Miséria, neste mês, em Brasília. A cerimônia foi marcada pela conhecida pompa dos redentores, onde mais uma vez um novo Brasil foi apresentado ao país. Apesar do sorriso de fachada, os cabeças-de-vento oficiais tiveram que lidar com a realidade além dos vídeos promocionais: segundo o IBGE, o número de miseráveis supera em 60% as estimativas oficiais.

Para combater os fatos, Dilma afirmou que serão destinados R$ 20 bilhões anualmente para o combate à extrema pobreza, menos que o trem-bala perdida do Rio a São Paulo. Isso significa que cada agraciado vai receber menos de R$ 10 por mês. Trinta centavos por dia para todos os direitos sociais. Ou seja, na canetada transformou em anões os moinhos de farrapos. Os critérios do que se considerava miserável antes da transformação publicitária eram aqueles com renda inferior a R$ 136 e não os atuais R$ 70. Se o desafio é muito maior do que a capacidade do governo, reduza-se o desafio. Dilma precisa compreender que barriga se enche com alimento, não com os ventos do moinho nem com os retalhos da Constituição.

Demóstenes Torres é procurador de Justiça e Senador

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