Platitudes e surrealismo
Uma das características mais notáveis do petismo no poder é transferir para o plano do surrealismo de Estado os problemas do País. Ao destinar questões administrativas delicadas às reflexões transcendentais eles se eximem das responsabilidades e se comportam com impessoalidade de tal modo burlesca que beira ao imponderável. São o máximo em dissimulação institucional, maior legado da Era Lula.
Só tal comportamento pode explicar as declarações do excelentíssimo senhor ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, acerca da situação da segurança pública no Brasil, especialmente sobre o sistema prisional. Os comentários repletos de platitudes parecem mais obra de um inconformado líder de ONG e certamente deveriam ser defesos à mais importante autoridade do setor do governo federal.
Vamos ao que o ministro Cardozo afirmou, conforme reportagem do Jornal O Globo: “Em primeiro lugar é preciso reconhecer que o crime organizado existe e precisa ser combatido”. Perfeitamente! Por acaso quem disse da inexistência de organizações criminosas no País? Basta breve verificação das estatísticas do próprio Ministério da Justiça para se inferir que o problema da segurança pública, incluindo aí o crime organizado, é o mais saliente da democracia brasileira.
Estamos falando em cerca de 50 mil homicídios por ano, o que situa o Brasil entre os mais violentos países do mundo. Os dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen) confirmam a tendência de aumento da criminalidade. Só nos dois mandatos da Era Lula, a população carcerária apresentou taxa de crescimento anual médio de 8,6%. Saltou em 2003 de 308.304 para 496.251 presos em cadeias públicas e nos estabelecimentos penais.
Os indicadores dos presos por tipo penal não deixam dúvidas sobre a escalada do crime organizado e desorganizado no Brasil. Nos últimos cinco anos, quando o Ministério da Justiça passou a apresentar informações com maior confiabilidade estatística, o número de encarcerados por roubo qualificado subiu 49,9%; por latrocínio houve um acréscimo de 68,2%; por extorsão mediante sequestro quase dobrou e por tráfico de entorpecentes o incremento chegou a 219,3%.
Se tais dados somados às informações cotidianas de criminalidade violenta não são suficientes para fazer o ministro da Justiça sair da filosofia e passar ao reino do pragmatismo, melhor seria que ele se candidatasse a gerenciar o setor de venda de pipoca da Disneylândia. E olha que estamos falando da criminalidade aparente, que gerou processo penal. Nas estatísticas não constam as conexões do tráfico de drogas com o comércio ilegal de armas, o contrabando, a pirataria, os grupos de extermínio, a lavagem de dinheiro e a corrupção.
O excelentíssimo ministro Cardozo também fez severas críticas ao sistema prisional por intermédio do argumento bacharelesco recorrente que situa as penitenciárias como “verdadeiras escolas de formação de criminosos.” Ele está muito preocupado com o fato de o sistema não “promover a reinserção dos presos” e alarmado com a constatação de que 80 mil detentos estejam custodiados em Delegacias de Polícia.
Naturalmente que a situação é muito pior que a capacidade de indignação ministerial quando é verificado o descaso financeiro do governo federal com o sistema prisional. Conforme dados do Sistema Integrado de Administração Financeira, em 2010, para não ir muito distante, o Ministério da Justiça tinha no Orçamento do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) míseros R$ 252 milhões de dotação autorizada. Conseguiu executar pouco mais de R$ 22 milhões e com os Restos a Pagar chegou a R$ 110 milhões, ou 43,6 % do total.
No orçamento de 2011, dos R$ 269 milhões autorizados do Funpen, R$ 176 milhões estão contingenciados, o que revela o baixo prestígio do Ministério da Justiça no Palácio do Planalto ou de como a voz agonizante dos presos amontoados não ecoa na Esplanada dos Ministérios.
O excelentíssimo ministro da Justiça acredita que os problemas de segurança pública do Brasil vão ser resolvidos com a integração dos entes federativos, além de ter condenado os políticos pela falta de iniciativas consistentes de promoção da atividade policial. Para Cardozo, mesquinhos políticos “fazem acordo tácito com o crime organizado fingindo que ele não existe.” Políticos? Que políticos? Seria melhor que ele desse nome aos bandidos e parasse de fingir ser ministro da Justiça para o bem da segurança do País.
Demóstenes Torres é procurador geral de Justiça e senador (DEM-GO)